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Diálogo com o Tempo

Atualizado: 2 de set.

Por Rodrigo Dallano


Foto: Rodrigo Dallano. Todos os direitos reservados.
Foto: Rodrigo Dallano. Todos os direitos reservados.

O menino empina a pipa onde, até pouco tempo, existia uma mata. Vieram os homens e sua prosperidade. As máquinas decretaram o fim da mata. Os bichos, quero acreditar, tiveram tempo para fugir. Triste sina que impusemos a eles: viver fugindo, em busca de um lugar para simplesmente viver.


A pipa, levada pelo vento, dança. O menino, em estado de completo encantamento, não fala, não pisca. Naquele instante, o mundo para diante daquele pedaço de papel que flutua. O menino não sabe, mas não tiraram as árvores dali para ele poder empinar a sua pipa. Ele não se deu conta, mas, ao fundo, os caixotes de concreto se aproximam, decretando o fim daquele lugar. Esse fim chegará antes do menino crescer. E assim, como as árvores e os bichos, o menino não terá mais um lugar para ser criança. A pipa não mais dançará com o vento. O menino não olhará mais para o céu, não perceberá mais se o vento está forte ou fraco, o que implica a pipa subir ou não. Talvez, dentro de um desses caixotes de concreto, o menino irá se esquecer do vento e da pipa... Perderá o encantamento, que hoje, tem com o vento.


Quando vi a cena do menino empinando a pipa, logo me veio à mente a série de pinturas de Cândido Portinari, Meninos soltando pipas, na qual, através de uma sequência de obras, ele retrata crianças de sua cidade natal, Brodowski, São Paulo. Segundo o próprio Portinari, pintar era uma forma de relembrar a sua infância — algo que eu, como fotógrafo, também senti. Eu fui esse menino que empinava pipa. Talvez eu tenha tido a sorte de crescer antes de as máquinas chegarem (sorte?). Ao fotografar aquela cena, e mesmo pensando em todas as coisas que descrevi acima, pude voltar no tempo e reviver na minha memória o menino que um dia se encantou com a pipa dançando com o vento.


Portinari dizia: “A paisagem onde a gente brincou pela primeira vez não sai mais da gente”. No instante da foto, pude recordar a paisagem onde brinquei quase toda a minha infância, e isso me fez lembrar de uma frase que há muito tempo me intriga: “Houve um dia em que… pela última vez, você e seus amigos de infância saíram para brincar na rua e voltaram para suas casas sem que nenhum de vocês soubesse que seria a última vez”. Não sei de quem é a frase, mas ela me provoca. E, ao ver o menino, pensei nela. Será que ele vai se dar conta desse último dia? Acredito que não.


Ainda sobre a fotografia, Pablo Neruda tem um poema que diz mais ou menos assim: “Algum dia, em qualquer parte, em qualquer lugar, indefectivelmente, encontrar-te-ás a ti mesmo, e essa, só essa, pode ser a mais feliz ou a mais amarga das tuas horas.” Eu diria ao poeta que ele tem razão, mas acrescentaria que esse encontro não será só um dia, mas vários dias. E a fotografia faz com que eu me encontre comigo mesmo todos os dias.



 
 
 

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